Folhetim por Licínia Quitério
“Dona Clotilde” – 6º. Episódio
Se tivesse um buraco tinha-se metido por ele abaixo. Mas calou, a fazer de conta que não era nada com ela, as mãos a tremer, ainda por cima na altura crítica de lacrar um envelope. Continuava firme nos seus princípios sobre as regras de bem viver: “Ca-da ma-ca-co no seu ga-lho!”. Silabava o aforismo, espaçadamente. Uma frase inteira sem “erres” era para ela um raro prazer de oratória que não podia dar-se ao luxo de desperdiçar. Cumpria o seu dever o melhor que sabia e o patrão, graças a Deus, nunca faltara com o ordenadinho no dia certo. Isso mesmo. Como o mundo seria melhor se todos pensassem como ela e, muito mais importante, se assim procedessem. Respirava fundo, de bem consigo própria.
Quando aquilo aconteceu, gritou, chorou, arrepelou a cabeleira farta. O corpo ficou-lhe cheiinho de urticária. Parecia um bicho, salvo seja. Uma porcaria daquelas na sua casa, não! Passaram-lhe coisas muito más pela cabeça, confessava. Se tivesse uma arma ali à mão, tinha acabado com os dois. Mas não tinha, graças a Deus. O certo é que a expressão dela devia ter sido medonha, de tal modo que os dois pombinhos, apanhados em plena e gostosa prevaricação, vestiram à pressa o que tinha sido despido, pegaram nos sapatos, não perderam tempo a calçá-los, e, ala que se faz tarde!, desceram a escada íngreme como se tivessem asas e sumiram-se da vista, toldada pela raiva, da infelicíssima Dona Clotilde.
Como sofreu, dias e noites a fio sem pregar olho. A casa parecia-lhe enorme, sem aqueles dois. Um túmulo, a bem dizer.
Lentamente, começou a deitar contas à vida, às voltas com o seu tormento. Sentia um ódio feroz contra um mundo inteiro que a teria traído, deixando-a como barata virada, a espernear em busca do equilíbrio perdido que lhe assegurasse nada mais que a própria sobrevivência. Apercebeu-se de que, apesar do cansaço, não poderia abrandar o esforço. Tinha de conseguir.
(continua)
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